O
livro The consumer trap, do
sociólogo Michael Dawson (2005) faz uso da analogia do efeito piranha para
enfocar a importância do marketing na formatação de uma sociedade e de uma
mentalidade de consumo. Referindo-se aos estudos de zoólogos sobre o
comportamento das piranhas na América do Sul, Dawson (2005) revela como, embora
uma piranha tenha dentes muito afiados e cortantes, individualmente elas não
apresentam muita ameaça, enquanto podem ser devoradoras quando atacam em grupo.
Esse
efeito piranha forneceria uma explicação para a influência do marketing dos
grandes negócios nas vidas dos norte-americanos, que, para Dawson, é consequência
de um forte investimento das grandes corporações em estarem constantemente
apoiando a invenção e o refinamento de poderosas técnicas de pesquisa voltadas
a captarem o comportamento que leva ao ato de compra. Isso gerou um crescimento
exponencial de investimentos corporativos que levassem o “estímulo de
marketing” a todas as esferas da vida, cercando as pessoas de uma grande
quantidade de mercadorias e reforços efetivos de formas de viver prescritos
pelas corporações. E como esse padrão de exposição ao estímulo de marketing é
renovado a todo o tempo, isso exerce sobre o comportamento um efeito bola de
neve, com as vidas tornando-se crescentemente inscritas sob os efeitos da
exposição presente e passada às campanhas de marketing.
Referindo-se
a algumas marcas típicas e suas estratégias de marketing, Dawson reforça sua
ideia ao mostrar como as marcas Alka-Seltzer e Cover Girl alteraram a rotina de
cuidados pessoais; Sopas Campbell e Kraft alteraram a rotina de preparar
refeições e de comer; a Nike alterou o vestuário e o calçado; e as marcas
Pepsi-Cola e Coca-Cola alteraram a rotina de comer e de beber. Tais exemplos
poderiam se multiplicar ad infinitum,
demonstrando como as campanhas de marketing, em conjunto, reforçam o nível e a
intensidade dos ambientes e do comportamento individual de consumo, em qualquer
tempo e o tempo todo.
A
analogia remete à história da formação da sociedade e da cultura de consumo,
tomando o marketing e a psicologia como produtos e protagonistas dessa
empreitada. Afinal, o que Dawson deixa entrever é a história de como o
marketing dos grandes negócios foi se tornando o ator principal de uma nova
configuração cultural que foi transformando a paisagem norte-americana – com
centros de compras e rodovias progressivamente suplantando os espaços públicos
como parques, livrarias, trilhas de trem e desertos –, e moldando a experiência
individual para que cada um tomasse os objetos de consumo como referência de
vida. Constatação também feita por Jeremy Rifkin, que, em uma reconstituição
histórica sobre a formação da cultura de consumo norte-americana, afirma que,
na década de 1920, a “comunidade empresarial americana decidiu modificar
radicalmente a psicologia que havia construído uma nação” e, com isso, “o
marketing, que até então havia desempenhado um papel secundário nos negócios,
assumiu nova importância. Da noite para o dia, a cultura do produtor
transformava-se na cultura do consumidor” (RIFKIN, 1995, p. 20).
Dessa
perspectiva, o marketing e a psicologia também surgem juntos e foram partes de
um projeto maior, de formação de uma nova mentalidade. Afinal, para que o
“efeito piranha” pudesse surgir, foi preciso que certos fatores políticos,
sociais e culturais concorressem para a formação de um “espírito de época” que
legitimasse uma nova forma de vida, pautada pela lógica do consumo.
É o
que mostram os historiadores da sociedade de consumo norte-americana, revelando
como foi possível uma sociedade que vivia sob a lógica da parcimônia e da
poupança se voltar para a gratificação imediata fornecida pelos produtos. Nesse
caso, contribuiu enormemente a invenção do “crédito ao consumidor”, como
demonstrado pelo historiador Calder (1999), sustentando o quanto essa invenção
social foi determinante para minar as resistências ideológicas de uma cultura
assentada na ética do trabalho e do viver a partir dos seus próprios meios.
Entretanto,
no início do século XX, a maioria dos norte-americanos ainda consumia produtos
fabricados em casa. Como torná-los consumidores de produtos fabricados
industrialmente? Ou seja, mesmo que o crédito ao consumo estivesse disponível,
como convencer a esse potencial consumidor que comprar produtos industriais era
mais conveniente? Para isso, os anúncios comerciais tiveram um papel central,
ao denegrirem os produtos caseiros e exaltarem os produtos feitos à máquina.
Havia, também, um trabalho corpo-a-corpo junto aos pontos de venda dos produtos
fabricados em massa, com profissionais de marketing ensinando aos seus alvos
como era melhor consumir caixas de aveia com marcas próprias, à aveia a granel
(STRASSER, 1989).
Portanto,
foram vários eventos que, em seu conjunto, formaram a sociedade de consumo e
“produziram o consumidor”: enquanto o macro marketing atuava em questões de âmbito público
que pudessem fornecer a infraestrutura para que essa sociedade efetivamente
existisse – como com o crédito ao consumidor –, o micro marketing atuava no
nível da psicologia do consumo, por meio de anúncios que enfocavam um estilo de
vida urbano, moderno, que demandava a comodidade que os produtos industriais
poderiam fornecer.
Mas
como e por que essa psicologia do consumo funcionou tão bem? Afinal, como
Rifkin (1995, p. 19) afirma com muita categoria, “o fenômeno do consumo de
massa não ocorreu espontaneamente, tampouco foi o subproduto inevitável de uma
natureza humana insaciável. Ao contrário”. Nesse sentido, por que a teoria da
insatisfação, da falta permanente, tão em voga nessa época pela disseminação da
psicanálise freudiana, foi tão bem utilizada pelo marketing?
Para
isso, contaram duas outras grandes ferramentas do marketing, que, junto com o advertising, também ajudaram a
produzir a cultura de consumo: a propaganda e a publicidade. O termo
publicidade está sendo utilizado da maneira como foi descrito no dicionário dos
termos de marketing da American Marketing Association (AMA) , em que publicity é definida como uma forma de
comunicação da companhia ou do produto, não paga, geralmente veiculada por
alguma mídia. Tal conceito tem uma profunda interface com o de “relações
públicas” (public relations), também definida, no referido dicionário,
como
[...]
aquela forma de gestão da comunicação que procura fazer uso da publicidade e
outras formas não pagas de promoção e informação para influenciar os
sentimentos, opiniões e crenças acerca de uma empresa, seus produtos ou
serviços, ou acerca do valor do produto, serviço ou das atividades dessa
organização para seus compradores, futuros clientes ou outras partes
interessadas, tais como: clientes, empregados, comunidade, acionistas etc.
Tal
aproximação, conceitual e prática, entre publicity e public
relations deve-se, também, à
maneira como Edward Bernays – um sobrinho do psicanalista Sigmund Freud, e
fundador da disciplina de relações públicas – estabeleceu uma estreita relação
entre mercado e espaço público visando à criação de uma cultura capaz de
“produzir consumidores”. Tal cultura, segundo Gorz (2005, p. 48), deveria
“produzir desejos e vontades de imagens de si e dos estilos de vida que,
adotados e interiorizados pelos indivíduos, transformam-nos nessa nova espécie
de consumidores que não necessitam daquilo que desejam, e não desejam aquilo de
que necessitam”.
Bernays
chegou aos Estados Unidos na década de 1920, exatamente a que vê despontar o
marketing como um ator central, em uma economia às voltas com o desafio de
encontrar saídas para o escoamento da produção industrial. Bernays acreditava
no poder ilimitado do desejo humano e propunha que, no ato da compra, devia-se
apelar não às necessidades racionais das pessoas, mas aos seus fantasmas e
desejos inconfessáveis. Tendo em vista que uma consideração central em psicanálise
é que o desejo é produzido pela cultura, a ideia básica era a de dar forma ao
desejo humano mediante sua associação a objetos de consumo.
O
desafio desse autor e prático das relações públicas era exercer um poderoso
papel junto aos grandes setores da economia – por exemplo, a indústria de
cigarros – a fim de que, com o seu engenhoso conhecimento das “motivações
irracionais” de uma sociedade, pudesse produzir desejos antes inimagináveis,
como o de fumar, especialmente no caso das mulheres, ao produzir imagens que
ligavam o fumo à liberdade feminina. É o que destaca Gorz (2005, p. 49):
Quando
a indústria de tabaco abordou Bernays, perguntando-lhe se ele via um meio de
fazer as mulheres fumarem, Bernays assumiu o desafio sem hesitar. O cigarro,
explicou ele, era um símbolo fálico, e as mulheres se disporiam a fumar se
vissem no cigarro um meio de se emanciparem simbolicamente da dominação
masculina. Por ocasião do grande desfile da festa nacional em New York,
informou-se à imprensa que um grande acontecimento iria se produzir [...] vinte
moças elegantes tiraram cigarros e isqueiros de suas bolsas e acenderam suas
simbólicas freedom torches. O cigarro havia-se tornado então o símbolo da
emancipação feminina.
Nesse
exemplo, pode-se, também, ver a imbricação entre publicidade e propaganda: uma
indústria de cigarros promovendo uma mudança de mentalidade e um estilo de
vida, ao mesmo tempo em que tinha por objetivo comercializar um produto
específico não por meio de um anúncio comercial de uma dada marca, mas por um
trabalho de relações públicas.
Autor de um livro chamado Propaganda,
Bernays (1928) demonstra, com o próprio título, essa profunda imbricação entre
publicidade e propaganda, tomando esta última como um “esforço organizado de
disseminar uma crença ou doutrina particular” (BERNAYS, 1928, p. 20). E a
“propaganda moderna” – continua o autor, em um livro escrito em 1928 – é “um
esforço consistente e permanente de criar ou moldar eventos para influenciar as
relações entre o público e uma empresa, uma ideia ou um grupo” (BERNAYS, 1928,
p. 25).
E por que isso funcionaria tão bem? Bernays diz que,
embora nós desejemos acreditar que cada cidadão cria suas próprias ideias sobre
questões públicas e matérias de condutas privadas, na prática isso não ocorre,
já que, se todos os homens tivessem que analisar os difíceis dados de
compreensão do mundo econômico, político e até mesmo de uma atuação ética,
seria impossível chegar a uma conclusão. Portanto, o campo das escolhas não
está livre de certa manipulação. Por isso, em tese, mas não na prática, todos
compram o melhor e o mais barato produto oferecido no mercado. Daí o vasto e
contínuo esforço de capturar nossas mentes no interesse de alguma mercadoria ou
ideia.
Ao analisar a “psicologia das relações públicas”, Bernays
(1928) centra o foco no estudo da “psicologia das massas”. Referindo-se a
autores clássicos no estudo da mente grupal, como Gustave Le Bon e, posteriormente,
Walter Lipoma, Bernays toma a prática recente e bem-sucedida (em 1928) da
propaganda – que incorporou em seus estudos a psicologia das massas – para
demonstrar como o grupo tem características distintas, sendo motivado por
impulsos e emoções que não podem ser explicados tomando-se por base a
psicologia individual. Nesse sentido, um ponto importante é que, conforme os
estudos demonstraram o grupo não “pensa”, no sentido estrito dessa palavra. No
lugar de pensamentos, a mente grupal funciona por impulsos, hábitos e emoções.
Daí porque a crença de um grupo em um líder já se mostrava um dos princípios
mais firmemente estabelecidos no estudo da psicologia das massas.
Bernays
ressalta que, ao falar da influência do grupo, não está assumindo que todos devam
estar juntos em um encontro público para serem influenciados pela psicologia
das massas. Ao contrário, sendo um ser gregário, o homem sente-se membro de um
grupo mesmo estando sozinho em seus aposentos. E quando planeja realizar algum
ato de compra, o faz não baseado em seu único e próprio julgamento, mas a
partir de uma miscelânea de impressões estampadas em sua mente por influências
externas que, inconscientemente, controlam seus pensamentos. E por isso o autor
deixa entrever, no que diz respeito à propaganda, o papel do “formador de
opinião” como uma autoridade, ou líder.
Bernays
(1928) dá o seguinte exemplo: suponha que um determinado produtor deseje vender
mais bacon. Em vez de usar a velha técnica psicológica de repetição de um
estímulo para criar um hábito – do tipo “coma bacon porque é barato, é bom, dá
energia” –, o “novo” vendedor, apoiado no entendimento da estrutura grupal da
sociedade, e nos princípios da psicologia de massas, se perguntaria: “quem é
que influencia os hábitos do público?”. Para o autor, a resposta seria “o
fisiologista”. Logo, o novo vendedor deveria influenciar os
fisiologistas a dizerem que é saudável comer bacon. Nesse caso, seria preciso
levar em conta a relação de dependência dos homens com alguma autoridade.
Em
um estudo contemporâneo que analisa a questão da “liberdade de escolha”, a
filósofa eslovena Renata Salecl afirma que Bernays acreditava que “as pessoas
compram algo porque uma autoridade com a qual se identificam possui tal objeto”
(SALECL, 2005, p. 38). O marketing das grandes corporações nunca pretendeu – e
nem pode – assumir esse lugar de autoridade, na medida em que trabalha com o
discurso da “liberdade de escolha”. Mas com os instrumentais dos quais passou a
lançar mão – propaganda, advertising
e publicidade –, todos já
dispondo de amplos estudos sobre a psicologia do consumo, o marketing assumiu o
lugar de canalizador e modelador dos desejos de uma época, vinculando-se a
figuras de autoridade.
Desse
ponto de vista, pode-se concluir que a história do marketing pode ser
compreendida a partir do momento em que as grandes corporações capitalistas
somaram forças com o governo norte-americano a fim de inaugurarem uma era de
fusão entre propaganda, publicidade e advertising,
no sentido de aderência a um sistema ideológico que propunha um estilo de vida
norte-americano fundamentalmente moldado pelo consumo. E que esse projeto entre
os negócios e a política contou com o apoio imprescindível da psicologia
existente à época. Quando destaca a influência política que
Bernays exerceu nos EUA, Gorz (2005) faz referência ao documentário do diretor
Adam Curtis, no qual o presidente norte-americano – Herbert
Hoover – elogiava o trabalho de Bernays, por transformar as pessoas em
“incansáveis máquinas de felicidade” (GORZ, 2005, p. 49).
Se
for seguida a datação proposta pela história do marketing – a que sustenta que
o marketing efetivamente surgiu na década de 1950, quando se deu a virada
discursiva para o foco no consumidor –, fica ainda mais clara a relação entre
política e mercado, por meio da celebração da cultura de consumo. Afinal, nessa
década, a propaganda de Estado foi marcada pela Guerra Fria, como sinônimo de
uma histórica disputa entre dois sistemas de governo: socialismo e capitalismo.
Basta uma breve leitura na história das grandes marcas da época para se
constatar como se dava essa imbricação entre o plano político e o
mercadológico. Para mencionar apenas um exemplo do “símbolo do capitalismo
norte-americano” – a marca McDonald’s –, segue uma parte de sua história,
retirada de Boas e Chain (1976 apud FONTENELLE, 2002, p. 107):
Com
o início da Guerra Fria, as cidadezinhas americanas começaram a atribuir, às
franquias com nomes de marca, uma expressão altamente patriótica. Na luta do
comunismo contra o capitalismo, os jornais dessas pequenas cidades apresentavam
o McDonald’s como exemplo da superioridade do sistema de livre-empresa, como a
resposta para o sonho americano. As convicções pessoais de Ray Kroc no que
tange ao seu anticomunismo ajudaram, também, a tornar o McDonald’s o “símbolo
do sucesso e durabilidade do capitalismo”, ao ponto dele ser convidado pela
Secretaria de Defesa em Washington, em 1958, para dar uma conferência de
orientação civil no Pentágono. A atração que Kroc conseguiu obter do governo
foi resultado de todo um investimento na imagem do McDonald’s como símbolo do
“american way”, quando Kroc instituiu o uso obrigatório da bandeira americana
em cada restaurante McDonald’s.
Enfim,
quando o presidente Eisenhower – conhecido pelas famosas rodovias que foram
determinantes para a instauração de um modo de vida baseado no automóvel e no
subúrbio – é clicado tomando Coca-Cola, como mencionado em Pendergrast (1993),
estaríamos diante de propaganda ou de publicidade?
Assim,
o funcionamento da psicologia voltada para a produção do consumidor merece ser
analisada do ponto de vista da construção política de uma mentalidade de
consumo, mais do que no nível das atuações individuais e corporativas do
marketing. Daí Kurz (1999 apud GORZ, 2005, p. 51) afirmar que a função direta
do marketing não é tanto “incitar à compra de mercadorias determinadas, mas
engendrar uma consciência que interiorizou a forma, o sentido, a estética
específica da ‘publicidade em geral’, e que vê o mundo com seus olhos [...]
[por meio da] formação, não apenas dos desejos e das cobiças, mas igualmente
dos sentimentos [e da] a tomada do inconsciente”.
Assim,
embora o termo propaganda tenha sido deixado como referência para o uso
político de governos, buscou-se demonstrar como ela foi atuante a partir de uma
parceria entre mercado e governo, na defesa dos princípios democráticos e com
uma base de sustentação ideológica da “livre escolha”. Não por acaso, ao
discorrer sobre o padrão da propaganda fascista, Adorno (2006, p. 184) comparou
a sua efetividade à “psicologia dos consumidores”. Tal paradoxo só pode ser
completamente compreendido quando se visualizam o marketing e a psicologia como
fenômenos de um projeto político que envolveu uma ampla conversão ideológica em
todos os âmbitos socioculturais de uma nação e forneceu o ambiente propício
para que o marketing e a psicologia se tornassem atores principais na
constituição da cultura de consumo.
Fonte e Sítios Consultados
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