A rede
do poder corporativo mundial
(a rede
do controle corporativo global)
Estamos
acompanhando décadas a fio, as notícias sobre grandes empresas comprando-se
umas às outras, formando grupos cada vez maiores, em princípio para se tornarem
mais competitivas no ambiente cada vez mais agressivo do mercado. Mas o
processo, naturalmente, tem limites. Em geral, nas principais cadeias produtivas,
a corrida termina quando sobram poucas empresas, que em vez de guerrear,
descobrem que é mais conveniente se articularem e trabalharem juntas, para o
bem delas e dos seus acionistas. Não necessariamente, como é óbvio, para o bem
da sociedade.
Controlar
de forma organizada uma cadeia produtiva gera naturalmente um grande poder
econômico, político e cultural. Econômico através do imenso fluxo de recursos –
maior do que o PIB de numerosos países – político através da apropriação de
grande parte dos aparelhos de Estado, e cultural pelo fato da mídia de massa
mundial criar, através de pesadíssimas campanhas publicitárias, uma cultura de
consumo e dinâmicas comportamentais que lhes interessa, gerando boa parte dos
problemas globais que enfrentamos.
Uma
característica básica do poder corporativo, é o quanto é pouco conhecido. As
Nações Unidas tinham um departamento, UNCTC (United Nations Center for
Transnational Corporations), que publicava nos anos 1990 um excelente relatório
anual sobre as corporações transnacionais. Com a formação da Organização
Mundial do Comércio, simplesmente fecharam o UNCTC e descontinuaram as
publicações. Assim, o que é provavelmente o principal núcleo organizado de
poder do planeta deixou simplesmente de ser estudado, a não ser por pesquisas pontuais
dispersas pelas instituições acadêmicas, e fragmentadas por países ou setores.
O
documento mais significativo que hoje temos sobre as corporações é o excelente
documentário A Corporação (The
Corporation), estudo científico
de primeira linha, que em duas horas e doze capítulos mostra como funcionam,
como se organizam, e que impactos geram. Outro documentário excelente, Trabalho
Interno (Inside Job), que levou o Oscar de 2011, mostra como
funciona o segmento financeiro do poder corporativo, mas limitado
essencialmente a mostrar como se gerou a presente crise financeira. Temos
também o clássico do setor, Quando as Corporações Regem o Mundo (When
Corporations Rule the World) de David Korten. Trabalhos deste tipo nos
permitem entender a lógica, geram a base do conhecimento disponível.
Mas nos
faz imensa falta a pesquisa sistemática sobre como as corporações funcionam,
como se tomam as decisões, quem as toma, com que legitimidade. O fato é que
ignoramos quase tudo do principal vetor de poder mundial que são as corporações.
Seria
natural e saudável que todos nós tivéssemos uma grande preocupação em não
inventarmos conspirações diabólicas, maquinações maldosas. Mas ao vermos como nos
principais setores as atividades se reduziram no topo a poucas empresas
extremamente poderosas, começamos a entender que se trata sim de poder político.
Agindo no espaço planetário, na ausência de governo mundial, e frente à fragilidade
do sistema multilateral, manejam grande poder sem nenhum contrapeso significativo.
A
pesquisa do ETH (Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica) vem pela
primeira vez nesta escala iluminar a área com dados concretos. A metodologia é
muito clara. Selecionaram 43 mil corporações no banco de dados Orbis 2007 de 30
milhões de empresas, e passaram a estudar como se relacionam: o peso econômico
de cada entidade, a sua rede de conexões, os fluxos financeiros, e em que
empresas têm participações que permitem controle indireto. Em termos
estatísticos, resulta um sistema em forma de bow-tie ¸ou “gravata borboleta”, onde temos um grupo de corporações
no “nó”, e ramificações para um lado que apontam para corporações que o “nó”
controla, e ramificações para outro que apontam para as empresas que têm
participações no “nó’.
A
inovação, é que a pesquisa aqui apresentada realizou este trabalho para o
conjunto das principais corporações do planeta, e expandiu a metodologia de
forma a ir traçando o mapa de controles do conjunto, incluindo a escada de
poder que às vezes corporações menores detêm, ao controlarem um pequeno grupo
de empresas que por sua vez controla uma série de outras empresas e assim por
diante. O que temos aqui é exatamente o que o título da pesquisa apresenta, “a
rede do controle corporativo global”.
Em
termos ideológicos, o estudo está acima de qualquer suspeita. Antes de tudo, é
importante mencionar que o ETH de Zurich faz parte da nata da pesquisa
tecnológica no planeta, em geral colocado em segundo lugar depois do MIT dos
Estados Unidos. Os pesquisadores do ETH detêm 31 prêmios Nobel, a começar por
Albert Einstein. A equipe que trabalhou no artigo entende tudo de mapeamento de
redes e da arquitetura que resulta. Stefano Battiston, um dos autores, assina
pesquisas com J. Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial. E em nenhum
momento tiram conclusões políticas apressadas: limitam-se a expor de maneira
muito sistemática o mapa do poder que resulta, e apontam as implicações.
A
pesquisa é de difícil leitura para não leigos, pela matemática envolvida. Pela
importância que representa para a compreensão de como se organiza o poder
corporativo do planeta, resolvemos expor da maneira mais clara possível os principais
aportes, ao mesmo tempo em que disponibilizamos abaixo o link do artigo
completo. As notas que seguem podem ser vistas como uma resenha expandida.
O que
resulta da pesquisa é claro: “A estrutura da rede de controle das corporações
transnacionais impacta a competição de mercado mundial e a estabilidade
financeira. Até agora, apenas pequenas amostras nacionais foram estudadas e não
havia metodologia apropriada para avaliar globalmente o controle. Apresentamos
a primeira pesquisa da arquitetura da rede internacional de propriedade, junto
com a computação do controle que possui cada ator global. Descobrimos que as
corporações transnacionais formam uma gigantesca estrutura em forma de gravata
borboleta (bow-tie), e que uma grande
parte do controle flui para um núcleo (core)
pequeno e fortemente articulado de instituições financeiras. Este núcleo pode
ser visto como uma “super-entidade” (super-entity)
o que levanta questões importantes tanto para pesquisadores como para os que traçam
políticas.”
Para
demonstrar como este travamento acontece, os autores analisam a estrutura
mundial de controle corporativo. O controle é aqui definido como participação
dos atores econômicos nas ações, correspondendo “às oportunidades de ver os
seus interesses predominarem na estratégia de negócios da empresa”. Ao desenhar
o conjunto da teia de participações, chega-se à noção de controle em rede. Esta
noção define o montante total de valor econômico sobre a qual um agente tem
influência.
O modelo
analisa o rendimento operacional e o valor econômico das corporações, detalha
as tomadas mútuas de participação em ações (mutual
cross-shareholdings) identificando as unidades mais fortemente conectadas
dentro da rede. “Este tipo de estruturas, até hoje observado apenas em pequenas
amostras, tem explicações tais como estratégias de proteção contra tomadas de
controle (anti-takeover strategies),
redução de custos de transação, compartilhamento de riscos, aumento de
confiança e de grupos de interesse. Qual que seja a sua origem, no entanto,
fragiliza a competição de mercado... Como resultado, cerca de ¾ da propriedade
das firmas no núcleo ficam nas mãos de firmas do próprio núcleo. Em outras
palavras, trata-se de um grupo fortemente estruturado (tightly-nit) de corporações que cumulativamente detêm a maior parte
das participações umas nas outras”.
Este
mapeamento leva por sua vez à análise da concentração do controle. A primeira
vista, sendo firmas abertas com ações no mercado, imagina-se um grau relativamente
distribuído também do poder de controle. O estudo buscou “quão concentrado é
este controle, e quem são os que detêm maior controle no topo”. Isto é uma
inovação relativamente aos numerosos estudos anteriores que mediram a
concentração de riqueza e de renda. Segundo os autores, não há estimativas
quantitativas anteriores sobre o controle. O cálculo consistiu em identificar
qual a fração de atores no topo que detém mais de 80% do controle de toda a
rede. Os resultados são fortes: “Encontramos que apenas 737 dos principais
atores (top-holders) acumulam 80% do
controle sobre o valor de todas as empresas transnacionais (ETN)... Isto
significa que o controle em rede (network
control) é distribuído de maneira muito mais desigual do que a riqueza. Em
particular, os atores no topo detêm um controle dez vezes maior do que o que
poderia se esperar baseado na sua riqueza.”
Combinando
o poder de controle dos atores no topo (top
ranked actors) com as suas interconexões, “encontramos que, apesar de sua
pequena dimensão, o núcleo detém coletivamente uma ampla fração do controle
total da rede. No detalhe, quase 4/10 do controle sobre o valor econômico das
ETNs do mundo, através de uma teia complicada de relações de propriedade, está
nas mãos de um grupo de 147 ETNs do núcleo, que detém quase pleno controle
sobre si mesmo. Os atores do topo dentro do núcleo podem assim ser considerados
como uma “super-entidade” na rede global das corporações. Um fato adicional
relevante neste ponto é que ¾ do núcleo são intermediários financeiros.”
Os números
em si são muito impressionantes, e estão gerando impacto no mundo científico, e
vão repercutir inevitavelmente no mundo político. Os dados não só confirmam
como agravam as afirmações dos movimentos de protesto que se referem ao 1% que
brinca com os recursos dos outros 99%. O New Scientist reproduz o comentário de
um dos pesquisadores, Glattfelder, que resume a questão: “Com efeito, menos de
1% das empresas consegue controlar 40% de toda a rede”. E a maioria são
instituições financeiras, entre as quais Barclays Bank, JPMorgan Chase&Co,
Goldman Sachs e semelhantes.
Andy
Haldane, diretor executivo de estabilidade financeira no Bank of England em
Londres, comenta que o estudo do ETH “nos deu uma visão instigante do melhor
dos mundos para as finanças...Uma análise como a da ‘rede que conduz o mundo’ é
bem vinda porque representa um salto para frente. Um ingrediente chave para o
sucesso em outras áreas tem sido uma linguagem comum e acesso compartilhado de
dados. No presente momento, as finanças não dispõem de nenhum dos dois.”
Haldane também comenta a enorme escala do problema: “O crescimento em certos
mercados e instrumentos financeiros tem ultrapassado de longe a lei de Moore
que previu que o poder dos computadores dobraria a cada 8 meses. O estoque de contratos
financeiros emitidos (outstanding
financial contracts) atinge agora cerca de 14 vezes o PIB anual global”.
Algumas
implicações são bastante evidentes. Assim, ainda que na avaliação de alguns
analistas, citados pelo New Scientist, as empresas se comprem umas as outras
por razões de negócios e não para dominar o mundo, não ver a conexão entre esta
concentração de poder econômico e o poder político constitui evidente falta de
realismo. Quando numerosos países, a
partir dos anos Reagan e Thatcher, reduziram os impostos sobre os ricos,
lançando as bases do agravamento recente da desigualdade planetária, não há
dúvidas quanto ao poder político por trás das iniciativas. A lei recentemente
passada nos Estados Unidos que libera o financiamento de campanhas eleitorais
por corporações tem implicações igualmente evidentes. O desmantelamento das
leis que obrigavam as instituições financeiras a fornecer informações e que
regulavam as suas atividades passa a ter origens claras.
Outra
conclusão importante refere-se à fragilidade sistêmica que geramos na economia
mundial. Quando há milhões de empresas, há concorrência real, ninguém consegue
“fazer” o mercado, ditar os preços, e muito menos ditar o uso dos recursos
públicos. Esses desequilíbrios se ajustam com inúmeras alterações pontuais,
assegurando uma certa resiliência sistêmica. Com a escalada atual do poder
corporativo, as oscilações adquirem outra dimensão. Por exemplo, com os
derivativos em crise, boa parte dos capitais especulativos se reorientou para commodities,
levando a fortes aumentos de preços, frequentemente atribuídos de maneira
simplista ao aumento da demanda da China por matérias primas. A volatilidade dos
preços de petróleo, em particular, está diretamente conectada a estas
estruturas de poder.
Os
autores trazem também implicações para o controle dos trustes, já que estas
políticas operam apenas no plano nacional: “Instituições antitruste ao redor do
mundo acompanham de perto estruturas complexas de propriedade dentro das suas
fronteiras nacionais. O fato de series de dados internacionais bem como métodos
de estudo de redes amplas terem se tornado acessíveis apenas recentemente, pode
explicar como esta descoberta não tenha sido notada durante tanto tempo”. Em
termos claros, estas corporações atuam no mundo, enquanto as instâncias
reguladoras estão fragmentadas em 194 países, sem contar a colaboração dos paraísos
fiscais.
Outra
implicação é a instabilidade financeira sistêmica gerada. Estamos acostumados a
dizer que os grandes grupos financeiros são demasiado grandes para quebrar. Ao
ver como estão interconectados, a imagem muda, é o sistema que é grande e
poderoso demais para que não sejamos todos obrigados a manter os seus
privilégios. “Trabalhos recentes têm mostrado que quando uma rede financeira é
muito densamente conectada fica sujeita ao risco sistêmico. Com efeito,
enquanto em bons tempos a rede parece robusta, em tempos ruins as empresas
entram em desespero simultaneamente. Esta característica de ‘dois gumes’ foi
constatada durante o recente caos financeiro”.
Ponto chave,
os autores apontam para o efeito de poder do sistema financeiro sobre as outras
áreas corporativas. “De acordo com alguns argumentos teóricos, em geral, as
instituições financeiras não investem em participações acionárias para exercer
controle. No entanto, há também evidência empírica do oposto. Os nossos
resultados mostram que, globalmente, os atores do topo estão no mínimo em
posição de exercer considerável controle, seja formalmente (por exemplo,
votando em reuniões de acionistas ou de conselhos de administração) ou através
de negociações informais”.
Finalmente,
os autores abordam a questão óbvia do clube dos super-ricos: “Do ponto de vista
empírico, uma estrutura em “gravata borboleta” com um núcleo muito pequeno e
influente constitui uma nova observação no estudo de redes complexas. Supomos
que possa estar presente em outros tipos de redes onde mecanismos de “ricos
ficam mais ricos” (rich-get-richer)
funcionam... O fato do núcleo estar tão densamente conectado poderia ser visto
como uma generalização do fenômeno de clube dos ricos (rich-club phenomenon).” A
presença esmagadora dos grupos europeus e americanos neste universo sem dúvida
também ajuda nas articulações e acentua os desequilíbrios.
Conclusões
gerais a se tirar? Não faltam na internet comentários de que o fato de serem
poucos não significa grande coisa. Na minha análise, é óbvio que se trata sim
de um clube de ricos, e de muito ricos, que se apropriam de recursos produzidos
pela sociedade em proporções inteiramente desproporcionais relativamente ao que
produzem. Trata-se também de pessoas que controlam a aplicação de gigantescos
recursos, muito mais do que a sua capacidade de gestão e de aplicação racional.
Um efeito mais amplo é a tendência de uma dominação geral dos sistemas
especulativos sobre os sistemas produtivos. As empresas efetivamente produtoras
de bens e serviços úteis à sociedade teriam todo interesse em contribuir para
um sistema mais inteligente de alocação de recursos, pois são em boa parte
vítimas indiretas do processo. Neste sentido, a pesquisa do ETH aponta para uma
deformação estrutural do sistema, e que terá em algum momento de ser enfrentada.
E
quanto ao que tanto preocupa as pessoas, a conspiração? A grande realidade que
sobressai da pesquisa, é que nenhuma conspiração é necessária. Ao estarem articulados
em rede, e com um número tão diminuto de pessoas no topo, não há nada que não
se resolva no campo de golfe no fim de semana. Esta rede de contatos pessoais é
de enorme relevância. Mas, sobretudo, sempre que os interesses convergem, não é
necessária nenhuma conspiração para que os defendam solidariamente, como na
batalha já mencionada para se reduzir os impostos que pagam os muito ricos, ou
para se evitar taxação sobre transações financeiras, ou ainda para evitar o
controle dos paraísos fiscais. O resultado é esta dupla dinâmica de intervenção
organizada para a proteção dos interesses sistêmicos, resultando em
corporativismo poderoso, e o caos competitivo que trava qualquer organização
sistêmica racional. gigantismo que
abraça muito mais recursos do que a capacidade de gestão. Demasiado fechado e
articulado para ser regulado por mecanismos de mercado, poderoso demais para
ser regulado por governos eleitos, incapaz de administrar os gigantescos
volumes de recursos que controla, o sistema financeiro mundial gira solto,
jogando com valores que representam cerca de 14 vezes o PIB mundial.
O caos
financeiro planetário, em última instância, tem uma origem bastante clara, de
poucos atores. No pânico mundial gerado pela crise, debatem-se as políticas de
austeridade, as dívidas públicas, a irresponsabilidade dos governos, deixando
na sombra o ator principal, as instituições de intermediação financeira. No
inicio do pânico da crise financeira, em 2008, a publicação do FMI Finance & Development estampou na
capa em letras garrafais a pergunta “Who’s
in charge?”, insinuando que ninguém está coordenando nada. Para o bem ou para
o mal, a pergunta está respondida.
O estudo do ETH abriu uma
janela importante para a abordagem científica do poder global das corporações,
com implicações óbvias para as ciências econômicas, políticas, sociais, de
relações internacionais e outras. A verdade é que temos ignorado o elefante que
está no centro da sala.
Fonte
e Sítios Consultados
http://www.outraspalavras.net/2011/11/23/a-rede-do-poder-corporativo-mundial/
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