7 de setembro de 2016

A Cultura do Consumo a a Invenção do Consumidor - apenas um fragmento desta história






O livro The consumer trap, do sociólogo Michael Dawson (2005) faz uso da analogia do efeito piranha para enfocar a importância do marketing na formatação de uma sociedade e de uma mentalidade de consumo. Referindo-se aos estudos de zoólogos sobre o comportamento das piranhas na América do Sul, Dawson (2005) revela como, embora uma piranha tenha dentes muito afiados e cortantes, individualmente elas não apresentam muita ameaça, enquanto podem ser devoradoras quando atacam em grupo.

Esse efeito piranha forneceria uma explicação para a influência do marketing dos grandes negócios nas vidas dos norte-americanos, que, para Dawson, é consequência de um forte investimento das grandes corporações em estarem constantemente apoiando a invenção e o refinamento de poderosas técnicas de pesquisa voltadas a captarem o comportamento que leva ao ato de compra. Isso gerou um crescimento exponencial de investimentos corporativos que levassem o “estímulo de marketing” a todas as esferas da vida, cercando as pessoas de uma grande quantidade de mercadorias e reforços efetivos de formas de viver prescritos pelas corporações. E como esse padrão de exposição ao estímulo de marketing é renovado a todo o tempo, isso exerce sobre o comportamento um efeito bola de neve, com as vidas tornando-se crescentemente inscritas sob os efeitos da exposição presente e passada às campanhas de marketing.

Referindo-se a algumas marcas típicas e suas estratégias de marketing, Dawson reforça sua ideia ao mostrar como as marcas Alka-Seltzer e Cover Girl alteraram a rotina de cuidados pessoais; Sopas Campbell e Kraft alteraram a rotina de preparar refeições e de comer; a Nike alterou o vestuário e o calçado; e as marcas Pepsi-Cola e Coca-Cola alteraram a rotina de comer e de beber. Tais exemplos poderiam se multiplicar ad infinitum, demonstrando como as campanhas de marketing, em conjunto, reforçam o nível e a intensidade dos ambientes e do comportamento individual de consumo, em qualquer tempo e o tempo todo.

                             
                                                                  Livro The consumer trap


A analogia remete à história da formação da sociedade e da cultura de consumo, tomando o marketing e a psicologia como produtos e protagonistas dessa empreitada. Afinal, o que Dawson deixa entrever é a história de como o marketing dos grandes negócios foi se tornando o ator principal de uma nova configuração cultural que foi transformando a paisagem norte-americana – com centros de compras e rodovias progressivamente suplantando os espaços públicos como parques, livrarias, trilhas de trem e desertos –, e moldando a experiência individual para que cada um tomasse os objetos de consumo como referência de vida. Constatação também feita por Jeremy Rifkin, que, em uma reconstituição histórica sobre a formação da cultura de consumo norte-americana, afirma que, na década de 1920, a “comunidade empresarial americana decidiu modificar radicalmente a psicologia que havia construído uma nação” e, com isso, “o marketing, que até então havia desempenhado um papel secundário nos negócios, assumiu nova importância. Da noite para o dia, a cultura do produtor transformava-se na cultura do consumidor” (RIFKIN, 1995, p. 20).


Dessa perspectiva, o marketing e a psicologia também surgem juntos e foram partes de um projeto maior, de formação de uma nova mentalidade. Afinal, para que o “efeito piranha” pudesse surgir, foi preciso que certos fatores políticos, sociais e culturais concorressem para a formação de um “espírito de época” que legitimasse uma nova forma de vida, pautada pela lógica do consumo.

É o que mostram os historiadores da sociedade de consumo norte-americana, revelando como foi possível uma sociedade que vivia sob a lógica da parcimônia e da poupança se voltar para a gratificação imediata fornecida pelos produtos. Nesse caso, contribuiu enormemente a invenção do “crédito ao consumidor”, como demonstrado pelo historiador Calder (1999), sustentando o quanto essa invenção social foi determinante para minar as resistências ideológicas de uma cultura assentada na ética do trabalho e do viver a partir dos seus próprios meios.

Entretanto, no início do século XX, a maioria dos norte-americanos ainda consumia produtos fabricados em casa. Como torná-los consumidores de produtos fabricados industrialmente? Ou seja, mesmo que o crédito ao consumo estivesse disponível, como convencer a esse potencial consumidor que comprar produtos industriais era mais conveniente? Para isso, os anúncios comerciais tiveram um papel central, ao denegrirem os produtos caseiros e exaltarem os produtos feitos à máquina. Havia, também, um trabalho corpo-a-corpo junto aos pontos de venda dos produtos fabricados em massa, com profissionais de marketing ensinando aos seus alvos como era melhor consumir caixas de aveia com marcas próprias, à aveia a granel (STRASSER, 1989).

Portanto, foram vários eventos que, em seu conjunto, formaram a sociedade de consumo e “produziram o consumidor”: enquanto o macro marketing atuava em questões de âmbito público que pudessem fornecer a infraestrutura para que essa sociedade efetivamente existisse – como com o crédito ao consumidor –, o micro marketing atuava no nível da psicologia do consumo, por meio de anúncios que enfocavam um estilo de vida urbano, moderno, que demandava a comodidade que os produtos industriais poderiam fornecer.

Mas como e por que essa psicologia do consumo funcionou tão bem? Afinal, como Rifkin (1995, p. 19) afirma com muita categoria, “o fenômeno do consumo de massa não ocorreu espontaneamente, tampouco foi o subproduto inevitável de uma natureza humana insaciável. Ao contrário”. Nesse sentido, por que a teoria da insatisfação, da falta permanente, tão em voga nessa época pela disseminação da psicanálise freudiana, foi tão bem utilizada pelo marketing?

Para isso, contaram duas outras grandes ferramentas do marketing, que, junto com o advertising, também ajudaram a produzir a cultura de consumo: a propaganda e a publicidade. O termo publicidade está sendo utilizado da maneira como foi descrito no dicionário dos termos de marketing da American Marketing Association (AMA) , em que publicity  é definida como uma forma de comunicação da companhia ou do produto, não paga, geralmente veiculada por alguma mídia. Tal conceito tem uma profunda interface com o de “relações públicas” (public relations), também definida, no referido dicionário, como

[...] aquela forma de gestão da comunicação que procura fazer uso da publicidade e outras formas não pagas de promoção e informação para influenciar os sentimentos, opiniões e crenças acerca de uma empresa, seus produtos ou serviços, ou acerca do valor do produto, serviço ou das atividades dessa organização para seus compradores, futuros clientes ou outras partes interessadas, tais como: clientes, empregados, comunidade, acionistas etc.


Tal aproximação, conceitual e prática, entre publicity e public relations deve-se, também, à maneira como Edward Bernays – um sobrinho do psicanalista Sigmund Freud, e fundador da disciplina de relações públicas – estabeleceu uma estreita relação entre mercado e espaço público visando à criação de uma cultura capaz de “produzir consumidores”. Tal cultura, segundo Gorz (2005, p. 48), deveria “produzir desejos e vontades de imagens de si e dos estilos de vida que, adotados e interiorizados pelos indivíduos, transformam-nos nessa nova espécie de consumidores que não necessitam daquilo que desejam, e não desejam aquilo de que necessitam”.

Bernays chegou aos Estados Unidos na década de 1920, exatamente a que vê despontar o marketing como um ator central, em uma economia às voltas com o desafio de encontrar saídas para o escoamento da produção industrial. Bernays acreditava no poder ilimitado do desejo humano e propunha que, no ato da compra, devia-se apelar não às necessidades racionais das pessoas, mas aos seus fantasmas e desejos inconfessáveis. Tendo em vista que uma consideração central em psicanálise é que o desejo é produzido pela cultura, a ideia básica era a de dar forma ao desejo humano mediante sua associação a objetos de consumo.

O desafio desse autor e prático das relações públicas era exercer um poderoso papel junto aos grandes setores da economia – por exemplo, a indústria de cigarros – a fim de que, com o seu engenhoso conhecimento das “motivações irracionais” de uma sociedade, pudesse produzir desejos antes inimagináveis, como o de fumar, especialmente no caso das mulheres, ao produzir imagens que ligavam o fumo à liberdade feminina. É o que destaca Gorz (2005, p. 49):

Quando a indústria de tabaco abordou Bernays, perguntando-lhe se ele via um meio de fazer as mulheres fumarem, Bernays assumiu o desafio sem hesitar. O cigarro, explicou ele, era um símbolo fálico, e as mulheres se disporiam a fumar se vissem no cigarro um meio de se emanciparem simbolicamente da dominação masculina. Por ocasião do grande desfile da festa nacional em New York, informou-se à imprensa que um grande acontecimento iria se produzir [...] vinte moças elegantes tiraram cigarros e isqueiros de suas bolsas e acenderam suas simbólicas freedom torches. O cigarro havia-se tornado então o símbolo da emancipação feminina.


Nesse exemplo, pode-se, também, ver a imbricação entre publicidade e propaganda: uma indústria de cigarros promovendo uma mudança de mentalidade e um estilo de vida, ao mesmo tempo em que tinha por objetivo comercializar um produto específico não por meio de um anúncio comercial de uma dada marca, mas por um trabalho de relações públicas. Autor de um livro chamado Propaganda, Bernays (1928) demonstra, com o próprio título, essa profunda imbricação entre publicidade e propaganda, tomando esta última como um “esforço organizado de disseminar uma crença ou doutrina particular” (BERNAYS, 1928, p. 20). E a “propaganda moderna” – continua o autor, em um livro escrito em 1928 – é “um esforço consistente e permanente de criar ou moldar eventos para influenciar as relações entre o público e uma empresa, uma ideia ou um grupo” (BERNAYS, 1928, p. 25).

      E por que isso funcionaria tão bem? Bernays diz que, embora nós desejemos acreditar que cada cidadão cria suas próprias ideias sobre questões públicas e matérias de condutas privadas, na prática isso não ocorre, já que, se todos os homens tivessem que analisar os difíceis dados de compreensão do mundo econômico, político e até mesmo de uma atuação ética, seria impossível chegar a uma conclusão. Portanto, o campo das escolhas não está livre de certa manipulação. Por isso, em tese, mas não na prática, todos compram o melhor e o mais barato produto oferecido no mercado. Daí o vasto e contínuo esforço de capturar nossas mentes no interesse de alguma mercadoria ou ideia.

         Ao analisar a “psicologia das relações públicas”, Bernays (1928) centra o foco no estudo da “psicologia das massas”. Referindo-se a autores clássicos no estudo da mente grupal, como Gustave Le Bon e, posteriormente, Walter Lipoma, Bernays toma a prática recente e bem-sucedida (em 1928) da propaganda – que incorporou em seus estudos a psicologia das massas – para demonstrar como o grupo tem características distintas, sendo motivado por impulsos e emoções que não podem ser explicados tomando-se por base a psicologia individual. Nesse sentido, um ponto importante é que, conforme os estudos demonstraram o grupo não “pensa”, no sentido estrito dessa palavra. No lugar de pensamentos, a mente grupal funciona por impulsos, hábitos e emoções. Daí porque a crença de um grupo em um líder já se mostrava um dos princípios mais firmemente estabelecidos no estudo da psicologia das massas.

Bernays ressalta que, ao falar da influência do grupo, não está assumindo que todos devam estar juntos em um encontro público para serem influenciados pela psicologia das massas. Ao contrário, sendo um ser gregário, o homem sente-se membro de um grupo mesmo estando sozinho em seus aposentos. E quando planeja realizar algum ato de compra, o faz não baseado em seu único e próprio julgamento, mas a partir de uma miscelânea de impressões estampadas em sua mente por influências externas que, inconscientemente, controlam seus pensamentos. E por isso o autor deixa entrever, no que diz respeito à propaganda, o papel do “formador de opinião” como uma autoridade, ou líder.

Bernays (1928) dá o seguinte exemplo: suponha que um determinado produtor deseje vender mais bacon. Em vez de usar a velha técnica psicológica de repetição de um estímulo para criar um hábito – do tipo “coma bacon porque é barato, é bom, dá energia” –, o “novo” vendedor, apoiado no entendimento da estrutura grupal da sociedade, e nos princípios da psicologia de massas, se perguntaria: “quem é que influencia os hábitos do público?”. Para o autor, a resposta seria “o fisiologista”. Logo, o novo vendedor deveria influenciar os fisiologistas a dizerem que é saudável comer bacon. Nesse caso, seria preciso levar em conta a relação de dependência dos homens com alguma autoridade.

Em um estudo contemporâneo que analisa a questão da “liberdade de escolha”, a filósofa eslovena Renata Salecl afirma que Bernays acreditava que “as pessoas compram algo porque uma autoridade com a qual se identificam possui tal objeto” (SALECL, 2005, p. 38). O marketing das grandes corporações nunca pretendeu – e nem pode – assumir esse lugar de autoridade, na medida em que trabalha com o discurso da “liberdade de escolha”. Mas com os instrumentais dos quais passou a lançar mão – propaganda, advertising  e publicidade –, todos já dispondo de amplos estudos sobre a psicologia do consumo, o marketing assumiu o lugar de canalizador e modelador dos desejos de uma época, vinculando-se a figuras de autoridade.

Desse ponto de vista, pode-se concluir que a história do marketing pode ser compreendida a partir do momento em que as grandes corporações capitalistas somaram forças com o governo norte-americano a fim de inaugurarem uma era de fusão entre propaganda, publicidade e advertising, no sentido de aderência a um sistema ideológico que propunha um estilo de vida norte-americano fundamentalmente moldado pelo consumo. E que esse projeto entre os negócios e a política contou com o apoio imprescindível da psicologia existente à época. Quando destaca a influência política que Bernays exerceu nos EUA, Gorz (2005) faz referência ao documentário do diretor Adam Curtis, no qual o presidente norte-americano – Herbert Hoover – elogiava o trabalho de Bernays, por transformar as pessoas em “incansáveis máquinas de felicidade” (GORZ, 2005, p. 49).

Se for seguida a datação proposta pela história do marketing – a que sustenta que o marketing efetivamente surgiu na década de 1950, quando se deu a virada discursiva para o foco no consumidor –, fica ainda mais clara a relação entre política e mercado, por meio da celebração da cultura de consumo. Afinal, nessa década, a propaganda de Estado foi marcada pela Guerra Fria, como sinônimo de uma histórica disputa entre dois sistemas de governo: socialismo e capitalismo. Basta uma breve leitura na história das grandes marcas da época para se constatar como se dava essa imbricação entre o plano político e o mercadológico. Para mencionar apenas um exemplo do “símbolo do capitalismo norte-americano” – a marca McDonald’s –, segue uma parte de sua história, retirada de Boas e Chain (1976 apud FONTENELLE, 2002, p. 107):

Com o início da Guerra Fria, as cidadezinhas americanas começaram a atribuir, às franquias com nomes de marca, uma expressão altamente patriótica. Na luta do comunismo contra o capitalismo, os jornais dessas pequenas cidades apresentavam o McDonald’s como exemplo da superioridade do sistema de livre-empresa, como a resposta para o sonho americano. As convicções pessoais de Ray Kroc no que tange ao seu anticomunismo ajudaram, também, a tornar o McDonald’s o “símbolo do sucesso e durabilidade do capitalismo”, ao ponto dele ser convidado pela Secretaria de Defesa em Washington, em 1958, para dar uma conferência de orientação civil no Pentágono. A atração que Kroc conseguiu obter do governo foi resultado de todo um investimento na imagem do McDonald’s como símbolo do “american way”, quando Kroc instituiu o uso obrigatório da bandeira americana em cada restaurante McDonald’s.

Enfim, quando o presidente Eisenhower – conhecido pelas famosas rodovias que foram determinantes para a instauração de um modo de vida baseado no automóvel e no subúrbio – é clicado tomando Coca-Cola, como mencionado em Pendergrast (1993), estaríamos diante de propaganda ou de publicidade?

Assim, o funcionamento da psicologia voltada para a produção do consumidor merece ser analisada do ponto de vista da construção política de uma mentalidade de consumo, mais do que no nível das atuações individuais e corporativas do marketing. Daí Kurz (1999 apud GORZ, 2005, p. 51) afirmar que a função direta do marketing não é tanto “incitar à compra de mercadorias determinadas, mas engendrar uma consciência que interiorizou a forma, o sentido, a estética específica da ‘publicidade em geral’, e que vê o mundo com seus olhos [...] [por meio da] formação, não apenas dos desejos e das cobiças, mas igualmente dos sentimentos [e da] a tomada do inconsciente”.


Assim, embora o termo propaganda tenha sido deixado como referência para o uso político de governos, buscou-se demonstrar como ela foi atuante a partir de uma parceria entre mercado e governo, na defesa dos princípios democráticos e com uma base de sustentação ideológica da “livre escolha”. Não por acaso, ao discorrer sobre o padrão da propaganda fascista, Adorno (2006, p. 184) comparou a sua efetividade à “psicologia dos consumidores”. Tal paradoxo só pode ser completamente compreendido quando se visualizam o marketing e a psicologia como fenômenos de um projeto político que envolveu uma ampla conversão ideológica em todos os âmbitos socioculturais de uma nação e forneceu o ambiente propício para que o marketing e a psicologia se tornassem atores principais na constituição da cultura de consumo.











Fonte e Sítios Consultados
 http://www.consumertrap.com/


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